o discernimento do peregrino
gratidão é coisa séria.
entre os dissabores mais intensos nomeio a gratidão calada.
cala-se a gratidão por dois motivos: ingratidão ou abuso.
a ingratidão vem do favorecido, o abuso vem do benfeitor.
a mordaça que vem do favorecido é fruto do autoengano: julga que tudo é graças a si e nunca apesar de si.
a mordaça que vem do benfeitor é também fruto do autoengano: igualmente julga-se que tudo é graças a si e nunca apesar de si.
a Torá narra a história de um encontro entre dois reis e um peregrino, que muito bem ilustra o bom discernimento sem o qual não se pode evitar o dissabor da gratidão calada.
a história a que me refiro é a história de Abrão, o peregrino, e seu encontro com o rei de Sodoma (Bera) e o rei de Salém (Melquisedeque).
do rei de Salém Abrão não viu problema em receber o favorecimento e tampouco em favorecê-lo, mas do rei de Sodoma nada quis e a ele disse:
"não aceitarei nada do que lhe pertence, nem mesmo um cordão ou uma correia de sandália, para que você jamais diga: 'Eu enriqueci Abrão' ".
daqueles a quem podemos expressar a gratidão podemos também ouvir a gratidão sem temer o abuso.
daqueles a quem não podemos expressar a gratidão é melhor não aceitarmos nada, nem mesmo a gratidão, pois até a dádiva da gratidão torna-se-á, mais cedo ou mais tarde, ocasião de abuso.
quando falta o discernimento e acaba-se aceitando o favorecimento de quem não se deveria aceitar, resta - a fim de romper o ciclo - calar a gratidão.
e ainda que nem toda gratidão calada seja ingratidão, a gratidão calada é, na melhor das hipóteses, um mal menor: um dissabor.
uma vez que ninguém pode dizer que tudo é graças a si e nunca apesar de si, o mais sábio, portanto, é aplicar-se ao bom discernimento, o discernimento do peregrino Abrão: a prudência das serpentes e o papo reto e sem mistura das pombas.
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~ m. gabriel d'almeida ~
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